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Da Dor  

7 de maio de 2013



Estimado André Consciência,

Falar-te-ei sobre o que é a dor deste lado do fim e dos inícios. 
A dor, meu amigo, é como uma pedra em chamas por onde os meus séculos retornaram. Um heliotrópio incendiado por um fluir de asas safíricas que me lembram os rumores da queda. Da minha dor, trago a certeza de um crepúsculo sobre as pálpebras, de um poente que me impele para o desaparecimento.
Eis o luto a enforcar as minhas rosas. Quando olho para as cicatrizes das mãos, elas estão límpidas como as tuas. Na minha pele não há memória de feridas ou de máculas, de melancolias roxas que me confundam os caminhos. No entanto, é debaixo da anunciação da noite, quando os heliotrópios queimam entre os arcos dos sóis morrentes, que me recordo de ser uma esfinge com coração e sangue.
Porque a dor está na memória encarcerada do meu sangue secular. Há aves antigas nesse meu estremecimento. Lembro-me dos séculos que tiniam e feriam a pele das estátuas. Lembro-me, sobretudo, das palavras frágeis do amor e de como acreditar era correr nas marés de todos os milagres. Agora, depois da transformação onírica do sangue e da carne, escassearam os milagres dessa reminiscência de vida humana. Porque não há dor maior do que a de estar vedado para a terna inocência da idade. Não há dor maior do que a de saber tudo e a de já tudo ter visto, como se o mundo fosse janela ou vitral estilhaçado sobre a ignomínia de um pesadelo cíclico.
É no entanto fácil retornar à gélida corrupção coronária. 
Embriago-me. E as rosas suturadas de lutos graves lentamente desenforcam-se. Os pássaros melancólicos desaguam sobre as taças do meu vinho, e o sangue trágico, latejado pela memória, acende as luzes frenéticas dos passos, faz-me caminhar pelos trilhos indeléveis das cidades restauradas. Tenho mais tempo que as pedras das pirâmides, mas ainda me acredito nas estâncias do Futuro. Sei que, debalde o pesar das minhas omoplatas desaladas, ainda sou capaz de incluir-me no Presente. Talvez porque tenha deixado de me agarrar ao tempo, como os homens liricamente fazem, como os homens tetricamente o acreditam.
Na verdade, manipulo as cordas soltas da eternidade. Aprendi que ser criança é também ser velho e inumado. E é nessa recusa de séculos e de datas, nesse esvoaçar de tempos quebrados, que afirmo a certeza de ser realmente eterna, que posso recusar e transmutar a minha dor.
Na verdade, não sofro nem sofrerei pelas pedras ou pelo pó das gárgulas. Para sofrer é preciso Estar definitivamente dentro do tempo. E eu atravessei as portas, ultrapassei as medidas. E se há em mim uma réstia de ardejado sofrimento, esse pulsar tem um único nome: melancolia. Mas sobre o hálito lunar da melancolia, lanço limalhas do novo, do inaudito – com a idade aprendi que os séculos são cíclicos e que são portanto todos o mesmo pulsar, mas que há ainda neles uma energia de esplendor que embora seja uma repetição é suficiente para nos agarrar ao lado da parede onde estão os vivos. 
E que também são cíclicas a minha vontade, e a minha incendiária força para constantemente ressuscitar.

Satina


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