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Da Memória  

7 de maio de 2013

Estimada Luiza Nilo,

Observo-te, e a tua pergunta é uma surpresa que nunca foi. Como um pássaro de memória luminosa e incandescente sobrevoas os trilhos da tua vivência e segues a tua vida a gostar de te sentir independente. Há uma maravilha nas vossas renuncias, e na forma como abrem a porta, para que todo o ser passe para o lado de lá, onde é ele próprio, afinal, o objecto renunciado, e isso não pode ser uma renuncia. Abre os olhos com muita força, e como um exercício, exercita os olhos que se abrem. Fecha os olhos e imagina então que os abres, e abre-os tanto que esse abrir realize um circulo perfeito, depois fita a tua vida, e que a tua memória não é tua, mas é a luz do Sol que te ilumina. Minha pequena, todas as memórias que portas são memórias do Sol. Só no inicio desta descoberta principia a natureza angélica que te compete.

No que me concerne, as memórias que tenho me não pertencem. Vivi desde o tempo dos primeiros barcos e desconfiei sempre que, sem o mar, nunca teriam existido Monstros, no sentido mais primevo da palavra. Não me refiro a criaturas perigosas para a carne, mas a sonhos medonhos o suficiente, e calmos, para ameaçar a luz do mundo. Não me cabe a mesma nobreza que te aconselho. Mas um imortal é imortal só no sentido de não sobreviver a si mesmo, e há nisto chagas várias que desempenham um papel de essência. Pensa que, depois de tudo poderes, nada te brinda com o fulgor amarelado do orgulho. Também que, depois da tua altura existir na tua profundidade, não te propagarás no outro. Por fim, que na extensão sempre crescente das tuas memórias, não há mais lugar para ti nelas, o eu é, afinal, uma medida de limitação entre o caos, o absoluto, e o limitado e organizado, mas eu não mais sou um barco, e sou um mar. 

Dentro dos possíveis, numa carta chamuscada pelos medos apressados do dia, deixo-me na esperança de me haver alinhado com a sapiência, pouca que seja.

Um dia repleto,
Mesh-ki-ang-gasher


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